SUL FLUMINENSE
Flores, mensagens de carinho, demonstrações de afeto, sorrisos e fotos dignas de porta-retratos, que hoje se virtualizam através das redes sociais, fazem parte do repertório até o momento em que as presas são fisgadas. Elas acreditam que recebem o que devotam. Acreditam que estão seguras até serem menosprezadas por aqueles que disseram amá-las. Indiferença, desprezo, inferiorização, xingamentos, tapas, socos, fraturas e perseguição são o passo a passo do medo que findam a vida das vítimas de feminicídio.
A Lei Maria da Penha, que completou 12 anos na última semana, representa um marco para a proteção dos direitos femininos ao endurecer a punição por qualquer tipo de agressão cometida contra a mulher no ambiente doméstico e familiar. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), que administra a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, o Ligue 180, foram registradas no primeiro semestre de 2018 quase 73 mil denúncias. O resultado é bem maior do que o contabilizado (12 mil) em 2006, primeiro ano de funcionamento da Central.
As principais agressões denunciadas são cárcere privado, violência física, psicológica, obstétrica, sexual, moral, patrimonial, tráfico de pessoas, homicídio e assédio no esporte. As denúncias também podem ser registradas pessoalmente nas delegacias especializadas em crime contra a mulher.
Feminicídio
Fruto da Lei Maria da Penha, o crime do feminicídio foi definido legalmente em 2015 como assassinato de mulheres por motivos de desigualdade de gênero e tipificado como crime hediondo. Segundo o Mapa da Violência, quase 5 mil mulheres foram assassinadas no país, em 2016. O resultado representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, houve um aumento de 6,4% nos casos de assassinatos de mulheres.
Nos últimos dias, alguns casos de agressão e morte repercutiram em todo o país e reacendeu o debate em torno da violência de gênero. No interior do Paraná, o Ministério Público apresentou denúncia por feminicídio contra o biólogo Luís Felipe Manvailer pelo assassinato de sua esposa, a advogada Tatiane Spitzner, de 29 anos. Ela foi encontrada morta no dia 22 de julho depois de, supostamente, ter sido empurrada do 4º andar do prédio onde o casal morava, em Guarapuava-PR.
“O valentão sempre vai no mais fraco fisicamente. Hoje em dia as pessoas estão denunciando; por isso a gente fica sabendo de mais casos. Antigamente ficava mais velado. Ainda existe machismo, mas em menor escala. Há muitos anos o cara era absolvido por legítima defesa da honra. Matava e ainda era o certo. Então ele dizia que matava por amor? O amor não mata; o amor não machuca. Quem ama quer o bem da pessoa; não faz mal a ela”, destaca a titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), em Volta Redonda, Mônica Areal.
Casos como este ocorrem independente de classe social ou faixa etária. “Soube do caso de uma mulher que sofreu agressões por 20 anos e resolveu denunciar. Os filhos ficaram contra ela: ‘Ah, depois de tanto tempo o pai já é um senhor e foi preso’. É uma situação complicada. Se fosse assim: ela apanha, denuncia e nunca mais olha na cara dele – seria um mar de rosas. Mas esse ciclo não acaba. A Deam não quer destruir as famílias, mas não quer que a mulher chegue ao ponto de estar dentro de um caixão. Prefiro que siga a vida dela sozinha ou com outra pessoa do que esteja em um local onde todos choram em volta e a polícia, correndo atrás de um homicida. Prefiro correr atrás de um espancador, de uma tentativa de homicídio do que olhar a estatística triste e revoltante”, acrescentou a delegada.
Casos como o da paranaense Tatiane Spitzner também foram registrados na região Sul Fluminense no último mês. A comerciária Viviane Ribeiro de Souza, de 46 anos, foi morta a facadas em casa, no bairro Vila Orlandélia, em Barra Mansa. O principal suspeito do crime, ocorrido no dia 11 de julho, é o companheiro da mulher. Em Porto Real, no dia 20, Robert de Oliveira Brasileiro, 32 anos, atirou contra a própria cabeça após ter matado com três tiros a ex-mulher, Érica Fernanda de Oliveira, 20 anos, no bairro Bulhões.
“A violência é inerente ao ser humano. A Lei Maria da Penha fala muito na situação de vulnerabilidade da mulher; que geralmente é no ponto físico. Quando você discute e começa a ficar com raiva; a violência que tem dentro de você aumenta e é muito mais fácil você bater no mais fraco; você descontar nele suas frustrações. Então eu acho que uma das coisas pra diminuir essa violência é a não dependência”, acrescenta a delegada.
Homem ainda trata a mulher como um ser inferior
Segundo o sociólogo e antropólogo de Resende, Gilberto Caldas, esse comportamento enraizado tem origem na própria estrutura da sociedade. No caso brasileiro, às origens; à própria cultura. Também destaca que a sociedade não se desenvolveu mais porque o homem ainda trata a mulher como um ser inferior.
“A colonização portuguesa e a influência europeia contribuíram muito para esse tipo de pensamento. Não podemos deixar de lembrar que nós temos uma cultura judaico-cristã; cultura religiosa predominante. Mesmo com o avanço significativo da religião evangélica que vem desde Lutero, esse viés religioso de que a figura masculina se sobrepõe à feminina conserva muito esse comportamento. Um estudo comparativo entre as religiões europeias e orientais aponta que o homem, por uma ignorância absoluta, relega a mulher ao segundo plano para exercer sobre ela um domínio. A psicologia chega à conclusão de que a humanidade perdeu uma grande oportunidade de um desenvolvimento maior exatamente porque o homem, ao invés de dividir as tarefas com as mulheres sempre as inferiorizou”, explicou.
Relacionamentos abusivos
O A VOZ DA CIDADE ouviu algumas mulheres que já sofreram em relacionamentos abusivos e o que enfrentam depois do rompimento. A identidade delas foi preservada.
“Ninguém escolhe uma pessoa agressiva. A gente sempre quer uma pessoa carinhosa, educada, gentil… E ele era assim até eu estar envolvida. Depois, quando eu discordava de alguma coisa, já era motivo pra me xingar e fazer uma tortura psicológica. As pessoas acham que agressão é só quando a gente apanha, mas não sabem o quanto a gente é destruída por dentro quando quem a gente ama fala a todo tempo que não valemos nada. Por várias vezes eu tentei procurar o problema dentro de mim até ver que ele estava diante do meu rosto todos os dias. É uma coisa louca; você achar que realmente não tem valor; ainda mais quando depois que termina não encontra apoio em ninguém e ainda ouve: quem procura, acha”.
“Acho que os homens não suportam a ideia da mulher, hoje, ser mais livre; trabalhar, ter vontade própria. Esperam de nós um padrão que eles estabeleceram há muito tempo. Fingem que concordam com a realidade, mas quando encontram uma mulher assim, na prática, se revelam primatas”.
“A gente (mulheres) não é mais caricatura de dona de casa, mas ao sairmos pra ter a vida que escolhemos, somos exigidas ainda mais. Eles não querem mesmo uma dona de casa, como nossas mães e avós foram; querem um corpo perfeito, uma postura perfeita se não somos descartáveis”
“O homem não tem noção do próprio comportamento. Julga normalidade sobre pequenos menosprezos. Não cede, é intolerante e a relação tem que ser unilateral; sempre ao que lhe agrada. Assim, a culpa sempre está na mulher; que relata seus anseios e incômodos, na compreensão de quem tem voz e seu lugar dentro do relacionamento; de que ela é 50% do casal em todos os sentidos. Mas isso não ocorre na maioria dos casos. Muito fácil dizer que a fila anda; não está satisfeita, segue seu rumo; ou outras coisas nesse sentido. Mas isso não muda em nada o que ela vai encontrar ali na frente. Pode até ter a sorte de achar alguém que a ame e a proteja; mas até que ponto? O ideal seria se o homem entendesse que a mulher com que ele está é parte de sua vivência; sem anular sua identidade, nem a dela. Assim, somente assim, acredito que haverá um relacionamento equilibrado; o que hoje é difícil de encontrar, pois o homem ainda olha pra dentro de si”, diz outra personagem, entre tantas, ainda!