Entre as inúmeras formas que o Transtorno do Espectro Autista pode assumir, uma das mais difíceis de identificar e, por isso mesmo, uma das mais negligenciadas é o autismo em meninas com nível 1 de suporte. Elas não “gritam” pelos sintomas clássicos. Elas se adaptam, se moldam, se camuflam. E, nessa tentativa contínua de pertencer, passam anos sem serem vistas como realmente são.
O que é o TEA Nível 1?
Trata-se da forma mais sutil (e muitas vezes invisível) do espectro autista, onde há necessidade de suporte leve, especialmente em demandas sociais, cognitivas e sensoriais. Essas crianças, adolescentes e mulheres não apresentam déficits intelectuais e, frequentemente, têm linguagem preservada ou até muito desenvolvida. Mas isso não significa que não sofram ou não precisem de apoio especializado.
Por que o diagnóstico atrasa em meninas?
Diferenças na apresentação clínica: o modelo diagnóstico ainda é muito baseado em perfis masculinos. Enquanto meninos tendem a apresentar comportamentos mais evidentes (isolamento social claro, interesses excêntricos, estereotipias visíveis), as meninas aprendem cedo a copiar comportamentos sociais, mesmo sem compreendê-los.
Camuflagem social e “máscara do socialmente adequado”: as meninas com TEA nível 1 geralmente observam e imitam — desenvolvem scripts sociais, frases decoradas, gestos aprendidos. Isso esconde suas dificuldades reais de interação, empatia intuitiva e compreensão emocional.
Interesses específicos mais aceitos: muitas têm hiperfoco por temas considerados típicos para a idade (animais, livros, estética, personagens de filmes) o que não levanta suspeitas, ainda que haja rigidez e obsessão por esses assuntos.
Comorbidades que encobrem o autismo: ansiedade, depressão, TDAH, distúrbios alimentares ou transtornos de personalidade costumam surgir na adolescência. Em vez de investigar a base neurodesenvolvimental dessas manifestações, os profissionais muitas vezes tratam apenas os sintomas.
Alguns sinais podem ajudar pais, educadores e profissionais a suspeitar do autismo em meninas com perfil leve: Dificuldade de iniciar ou manter amizades genuínas, apesar de estar rodeada de colegas; Fadiga extrema após eventos sociais ou escolares; Comportamentos repetitivos mais sutis (organizar objetos, repetir diálogos, obsessão por rotinas); Ansiedade intensa e perfeccionismo, com crises internas frequentes; Interesse por regras, moral, justiça, mas dificuldade de lidar com imprevistos ou ambiguidades sociais; Preferência por adultos ou brincadeiras solitárias e controladas; Apresentação “hipermadura” para a idade, mas com sofrimento emocional encoberto; Sensibilidades sensoriais (a tecidos, sons, cheiros) muitas vezes negadas ou minimizadas.
E quando o diagnóstico finalmente chega?
Frequentemente, isso só ocorre na adolescência ou vida adulta, após episódios de colapso emocional, tentativas de compreender a si mesma, ou quando uma filha recebe o diagnóstico, aí a mãe se reconhece. O diagnóstico, ainda que tardio, traz alívio e sentido: explica a exaustão constante, os mal-entendidos sociais, as crises internas que nunca pareciam “proporcionais”.
Mas o ideal seria que não demorasse tanto. Quanto mais cedo a identificação, mais cedo o suporte, a validação e a construção de estratégias adaptativas eficazes.
O TEA em meninas com nível 1 não é menos real. Ele é apenas menos visível, mas igualmente impactante. Precisamos de mais escuta, mais formação profissional, mais espaço para acolher a diferença quando ela vem com sorriso doce, boas notas e uma aparente adaptação.
Nem toda dor grita. Algumas apenas se calam. E é nosso papel, enquanto profissionais e sociedade, aprender a escutar esse silêncio.
Estamos juntos!
Marcele Campos
Psicóloga Especialista em Neuropsicologia (Avaliação e Reabilitação) e Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo, Atrasos de Desenvolvimento Intelectual e Linguagem. Trabalha há mais de 28 anos com crianças e adolescentes. Proprietária da Clínica Neurodesenvolver.