O início das férias escolares costuma ser celebrado como um respiro para muitas famílias. Mas, para aquelas que convivem com crianças autistas, esse período pode despertar sentimentos bem mais complexos. O que para uns é sinônimo de descanso, para outros pode representar insegurança, ansiedade e desorganização emocional. Isso acontece porque, para muitas crianças no espectro do autismo, a previsibilidade não é apenas um conforto é uma necessidade vital.
A escola cumpre um papel estruturante: organiza o tempo, dá ritmo aos dias e oferece referências claras de começo, meio e fim. Quando as férias chegam, essa engrenagem se interrompe de forma abrupta. Horários mudam, a casa fica mais cheia, passeios surgem sem aviso. E aquilo que, para os adultos, parece leve e prazeroso, pode ser vivido pela criança como excesso de estímulos e perda de controle. É nesse cenário que aparecem comportamentos como irritabilidade, crises, regressões ou isolamento, muitas vezes interpretados, de forma equivocada, como “birra”.
Preparar uma criança autista para as férias começa antes mesmo do último dia de aula. Conversar sobre a mudança, explicar o que são as férias e quanto tempo elas vão durar ajuda a construir previsibilidade. Recursos como calendários visuais, contagens regressivas e quadros de rotina tornam o tempo mais concreto e compreensível. Quando a criança sabe o que esperar, o impacto emocional da mudança diminui consideravelmente.
Durante o recesso, manter uma rotina mínima é essencial. Não se trata de reproduzir o ritmo escolar, mas de preservar pilares importantes, como horários de sono, alimentação e algumas atividades estruturadas. Pequenos combinados diários, apresentados de forma clara e objetiva, ajudam a criança a se organizar internamente e a reduzir a ansiedade. Vale lembrar: férias não precisam ser sinônimo de agenda cheia. Para muitas crianças autistas, menos estímulos significam mais equilíbrio.
Passeios e viagens também pedem planejamento. Antecipar informações, mostrar fotos dos lugares, explicar quem estará presente e quanto tempo a atividade vai durar faz toda a diferença. Sempre que possível, respeitar os limites sensoriais da criança como barulho, aglomerações e mudanças bruscas, evita sobrecargas desnecessárias. Ter um plano alternativo, caso algo não aconteça como o esperado, é uma demonstração concreta de cuidado.
As férias podem, sim, ser um tempo de descanso e prazer para crianças autistas, desde que sejam pensadas a partir de suas necessidades. Momentos de brincadeira livre, atividades sensoriais, interesses específicos e tempo de qualidade com a família fortalecem vínculos e promovem bem-estar. Não é preciso “aproveitar tudo”. O mais importante é que a criança se sinta segura, compreendida e respeitada.
Por fim, é fundamental lembrar que preparar uma criança autista para as férias também envolve preparar o ambiente e os adultos ao redor dela. Ajustar expectativas, reduzir cobranças e compreender que cada criança vivencia esse período de forma única transforma o recesso escolar em uma oportunidade de cuidado, e não em uma fonte de sofrimento.
Quando as férias são construídas com previsibilidade, acolhimento e respeito, elas deixam de ser um desafio constante e passam a ser um tempo possível de pausa, conexão e desenvolvimento emocional para toda a família.
Marcele Campos
Psicóloga Especialista em Neuropsicologia (Avaliação e Reabilitação) e Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo, Atrasos de Desenvolvimento Intelectual e Linguagem. Trabalha há mais de 28 anos com crianças e adolescentes. Proprietária da Clínica Neurodesenvolver.
