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Especial Casa Flip+ CCR: Na escrita, o atraso também é um jeito de narrar

Os escritores Leda Cartum e Marcílio França Castro contam sobre os bastidores de suas obras, o impacto das descobertas em pesquisas que fazem para escrever e como tempo muda em suas narrativas, na terceira mesa da Casa CCR, na 22ª Flip

Por Roze Martins
ccr

PARATY

“O atraso é um modo de tempo”. A frase, na orelha do livro “O Porto”, de Leda Cartum, encantou tanto a escritora que foi parar em seu livro seguinte. “Nem sei se entendo direito o que isso quer dizer. Mas acho fascinante para entender a temporalidade da escrita. É diferente do tempo cotidiano. Aqui, vivemos no imediato, pensamos em algo e logo compartilhamos. Tudo se se esgota muito rápido. No texto, vejo tudo como mais profundo e mais lento”, ela disse no painel Modos de Narrar, promovido pela Casa CCR, na 22ª Flip.

Leda que é escritora, tradutora e roteirista, faz o podcast Vinte Mil Léguas e dividiu a mesa com Marcílio França Castro, escritor e redator de carreira na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. A mediação foi do escritor Igor de Albuquerque. O debate faz parte da programação gratuita oferecida pelo Instituto CCR, patrocinador e parceiro oficial de mobilidade da Flip.

A autora diz não saber se faz poesia, romance ou contos: seus livros, com estilo de narrativas curtas, já tiveram as três definições. Mas ela volta à questão do atraso como modo de escrita para explicar que o escritor está sempre atrasado em relação a vida, percebendo o mundo como se estivesse desencaixado. “Escrever vem da noção de que podemos viver em outro tempo, entender-se melhor e estar mais aqui”, ela disse, depois de indagar “por que raios a gente segue escrevendo?”.

Sabe aquela resposta que só pensamos horas depois de uma discussão, quando estamos no banho e já não dá tempo de dizer ao interlocutor? Esse, para ela, é o atraso do autor. É do que tratam os livros de Tchekhov, escritor por quem Leda tem estado obcecada: “Toda a obra dele é sobre a vida que não foi vivida, que poderia ter acontecido de maneira diferente de como aconteceu. O atraso é modo de narrar. O que nos interessa é o descompasso, encontrar esse lugar possível na falta de lugar”, afirmou.

A ilusão dos gêneros

Marcílio relata logo em seu primeiro livro, A Casa dos Outros, de 2009, que percebeu que gêneros literários eram uma ilusão. “Se trata de narrativas curtas sem círculo de narrativas. Digo inclusive aos amigos que não gostam de ler que eles podem ver apenas as figuras. É um jeito também de narrar”, riu. Ao seu lado, para desconstruir as formas de narrar, estava o prazo: tinha que entregar o romance em um ano e esse deadline apertado fez com que criasse um processo mais conciso.

“É melhor comentar um romance do que escrevê-lo, como dizia Borges”, afirmou. No livro “Histórias Naturais”, ele assume a possibilidade de múltiplas formas de escrita e acha mais apropriado chamá-las de ficções. Aqui, a ficção surge a partir de fato histórico deslocado para outro ponto de vista – podem ser postais, cartas, narrativas variadas. Essa mistura, ele confessa, pode causar confusão no leitor: há um ensaio ficcional, por exemplo, criado a partir de uma exposição fictícia na biblioteca nacional de Paris. A mostra, entretanto, poderia ter sido realizada: tudo o que Marcílio juntou na narrativa para contar essa história, de fato, existia. “Uma amiga perguntou quando havia sido a exposição, porque ela estava em Paris e não havia ficado sabendo. Eu tive que explicar que aquilo não era real”, disse. Leda ficou surpresa: ela também havia lido o livro acreditando que se tratava de uma descrição factual.

O maravilhamento com o desconhecido

Leda conta que, desde pequena, ficava maravilhada com livros pop up, em que a cauda de uma baleia sai das páginas. O mar permeia as obras dos dois escritores, apesar de serem ambos criados em cidades sem praia (Leda é de São Paulo e Marcílio, de Belo Horizonte). “Na época das grandes navegações, o mundo foi crescendo. O que se conhecia ainda era muito pouco e, a partir dali, tudo passou a ser possível”, ela afirmou, com profundo interesse em criaturas marítimas como o polvo (“tão fascinante e maluco quanto uma sereia”). A partir desse momento da história do mundo, ela refletiu, passou a ser possível conceber o inimaginável.

Na infância, Leda queria ser treinadora de golfinhos — mas eles ficariam presos, então escrever foi um jeito de lidar com fantasias oceânicas que tanto nos atraem, como diz Moby Dick. “É o desencaixe do artista que permite que a gente circule entre tantos caminhos diferentes.”

Marcílio compartilha o encantamento com o novo desde que pegava a estrada com os pais em Minas para ir à Bahia, terra natal de seu pai. “Meu interesse era por mapas, estávamos sempre em trânsito, de carro, ônibus ou trem, em busca da placa da divisa. Eu queria ver a placa”, ele diz. O mapa, segundo ele, é uma ficção. E sua imprecisão remete à imprecisão da literatura e da escrita. “Escrever é uma tentativa de direção e orientação. Não consigo escrever sem saber o ponto de partida, de chegada, e também se há radares e postos de gasolina no percurso. Mas, ao longo da escrita, vou modificando esse roteiro: vou mapeando, mas mudo o mapa e mudo a escrita”, contou. Para ele, as ideias surgem do acaso, mas, para isso, é importante estar vivendo um tipo de distração atenta, fórmula para capturar o benefício do acaso na escrita.

Leda acredita que os bons livros são os que guardam o tempo de seu processo de escrita dentro de si. “É aí que a literatura arrebata. Quando percebemos, na leitura, que o livro guarda o tempo dele o período em que foi escrito”, filosofou. “Para escrever, a gente tem que ser um pouco maluco. Mas é uma maluquice maravilhosa se embrenhar em coisas que não fazem sentido nenhum. Entre idas e vindas, eu olho de fora pensando: o que estou fazendo? isso não cabe no mundo. Não dá para explicar e, se parar para pensar, talvez a gente pare de fazer”, concluiu.

 

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