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Em “Pneumotórax”, poema do livro “Libertinagem”, Manuel Bandeira transforma em versos sarcásticos a sua rotina de problemas pulmonares. O escritor modernista foi uma das famosas vítimas da tuberculose, doença conhecida como o mal do século XIX, por ter levado à morte milhões de pessoas mundo afora. Até hoje, mesmo com a evolução dos tratamentos, a “peste branca” ainda é um dos mais graves problemas de saúde pública e a maior causa de óbitos entre as doenças infecciosas no mundo. Neste 24 de março, Dia Mundial de Combate à Tuberculose, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) faz um alerta à população e anuncia a transferência de R$ 19,5 milhões para que os 92 municípios implementem ações de segurança alimentar aos pacientes em tratamento. Essa ação faz parte de uma cooperação técnica assinada com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e que integra o Plano Estadual de Enfrentamento à Tuberculose, parceria com a Assembleia Legislativa do Estado (Alerj) que destinará R$ 246,3 milhões oriundos de verbas parlamentares para o combate à doença, durante os próximos cinco anos.
“A tuberculose é um dos nossos grandes desafios. O Rio de Janeiro é o segundo estado com a maior taxa de incidência no Brasil. Também apresenta alta taxa de interrupção do tratamento, favorecendo o desenvolvimento de resistência às drogas, que por sua vez contribui para um cenário de persistência da transmissão. Precisamos urgentemente reduzir esses índices e impactar os dados no estado. Os investimentos são essenciais para essa população, que precisa de recursos para não deixar de se tratar”, destaca o subsecretário estadual de Vigilância e Atenção Primária à Saúde, Mario Sergio Ribeiro.
Entre as ações da SES dentro do Plano Estadual de Enfrentamento à Tuberculose está a transferência de recursos do Fundo Estadual de Saúde, no valor de R$ 19,5 milhões, para Fundos Municipais de Saúde, direcionados à implementação de iniciativas de segurança alimentar e nutricional e suporte social para pessoas diagnosticadas com a doença. Os repasses são destinados ao pagamento de auxílio alimentação no valor de R$ 250, conforme pactuado na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), a cada paciente em tratamento. E poderá ser viabilizado através de vale-alimentação, cestas básicas, restaurantes populares ou cartão alimentação.
“A garantia do direito à alimentação para as pessoas acometidas por tuberculose é fundamental. Há evidências de que o comprometimento do estado nutricional e a desnutrição destacam-se como fatores de risco para o desenvolvimento e o agravamento da doença. O benefício é destinado a todos os usuários com diagnóstico da doença notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que estão sendo acompanhados pelos programas de controle da tuberculose, seja por unidades municipais, estaduais ou federais, a nível ambulatorial”, detalha Marneili Martins, gerente de Tuberculose da SES.
Levantamento recente da SES aponta que o Rio de Janeiro ocupa a segunda posição no ranking nacional relativo à incidência de tuberculose, sendo o primeiro em mortalidade por esta causa. Em 2021, foram notificados 15.456 casos, sendo 12.590 novos. Os números são 7,7% maiores quando comparados com 2020, quando foram feitos 14.356 registros. A maior parte dos casos registrados no estado (75,7%) ocorreu na Região Metropolitana I, que abrange 60,6% da população fluminense. Pela primeira vez, em mais de uma década, houve um aumento de mortes em decorrência da tuberculose, agravado, segundo especialistas, devido à pandemia da Covid-19.
Apesar do número de casos diagnosticados e notificados ter sofrido redução em 2020, reflexo do primeiro ano mais crítico da pandemia, o número de óbitos tem aumentado. Em 2020, foram registrados 765 óbitos no estado. Em 2019, 659 mortes. Em 2021, 805. “Provavelmente mais pessoas morreram de tuberculose porque menos gente foi diagnosticada e tratada em comparação com 2019”, afirma Marneili Martins.
Pacientes sofrem preconceito
Estigma e preconceito rondam os tísicos, como ficaram conhecidos os tuberculosos. Isso porque entre os fatores da disseminação da doença estão a pobreza, a desnutrição, as más condições sanitárias e a alta densidade populacional. Além disso, a Aids e a tuberculose costumam afetar os mesmos grupos, reforçando o estigma. Entre as vítimas fatais de tuberculose em 2014, 12% possuíam as duas doenças, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Isso acontece, principalmente, porque o sistema imunológico fica debilitado e não é capaz de defender o corpo contra o agente causador da tuberculose, o bacilo de Koch.
“O alto índice de mortes pode estar ligado à interrupção do tratamento, que dura em média seis meses, e à baixa busca por cuidados médicos. Além disso, as áreas mais pobres ainda são bastante afetadas, onde há pouca ventilação e baixa incidência de sol. Isso ocorre porque o agente causador da doença se propaga mais facilmente em áreas com essas características”, acrescenta Marneili.
Uma das vítimas do preconceito, a agente comunitária de saúde (ACS) Rita Smith, de 59 anos, conseguiu mudar o rumo da sua história de dor e sofrimento e usou a sua experiência de luta no convívio com a doença para mudar a realidade de moradores da sua vizinhança que, na ocasião, era conhecida como o maior foco de tuberculose do país: a Rocinha. Ela perdeu a mãe para a tuberculose, em 1984, contraiu a doença logo depois e enfrentou um longo calvário até entrar para a equipe de agentes comunitários, em 2003. Rita passou, então, a atuar na linha de frente de combate à doença e se engajou em movimentos para conscientizar os moradores. ” A tuberculose é a doença da precariedade, da insalubridade, da vulnerabilidade social. Sou alcoólatra, era usuária de drogas e perdi a minha mãe para a tuberculose. Fui no fundo do poço, enfrentei o preconceito por ser homossexual, abandonei o tratamento duas vezes, mas quando me ergui, visualizei a importância da minha experiência para mudar a realidade das pessoas”, relata Rita, que hoje é agente comunitária aposentada.
Na época em que Rita começou a atuar, a Rocinha estava enfrentando seu pior momento com a doença. Em 2001, chegou a registrar 455 casos por 100 mil moradores. Na ocasião, graças à atuação de equipes de saúde das três esferas públicas no local, a taxa de recuperação chegou a 93% dos casos. Dados de 2021, ainda sujeitos a alterações, mostram que a incidência de casos da doença no estado está em 74,07 por 100 mil habitantes, e a de mortalidade, 4,6 por 100 mil habitantes. “A população precisa ter acesso à informação, à água para se higienizar, à renda, para poder se manter em casa durante o tratamento, aos medicamentos e ao alimento”, diz Rita.